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Há um ano de seu assassinato: MARIELLE VIVE. Entenda o porquê e o que isso significa.

Imagem relacionadaPor Wilson Honório da Silva.

Acredito que, hoje, diante da prisão dos executores do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes (mas não dos mandantes), todos e todas nós que dedicamos nossas vidas à luta contra a opressão e à exploração, estamos com os nervos à flor da pele, o coração apertado e a mente em ebulição.

Não faltam razões para isso: a demora nas investigações (e a "coincidência" da prisão às vésperas do dia em que se completa um ano do assassinato), o suspeitíssimo fato de que um dos canalhas ser vizinho de Bolsonaro; as relações com os milicianos e, consequentemente, também com os filhotes do "coiso", a PM e boa parte dos políticos cariocas; a hipocrisia que tem caracterizado a história toda e, fundamentalmente, as poucas garantias de que os mandantes, de fato, serão punidos.

Eu, particular e profundamente, me sinto assim. E confesso que fico sempre meio que "fora do eixo" ao falar da Marielle. Éramos de gerações diferentes (ela nasceu na mesma época, 1979, em que eu estava começando a militar) e não tive o prazer de conviver diretamente com ela.

Contudo, como sempre militamos nas mesmas coisas (racismo e LGBTfobia, em particular), nos cruzamos em algumas oportunidades em atividades e, principalmente, debates dos movimentos e, independentemente de quaisquer diferenças que tivéssemos, é difícil esquecer de sua simpatia, seu sorriso largo, sua garra, sua convicção e sua dedicação realmente apaixonada às causas às quais dedicou sua vida.

Tudo isso embrulhado em uma humildade característica daquelas que, vindo da periferia e tendo enfrentado a opressão cotidianamente, não via suas conquistas como vitórias individuais ou símbolos de um desejo de "integração" à sociedade dominante.

Pelo contrário. Sempre vi nela a postura de quem (principalmente sendo mulher, negra e lésbica) tem consciência de que qualquer conquista individual dos "de baixo" tem suas raízes na coletividade, na nossa ancestralidade quilombola, na história de lutas e sofrimentos "dos nossos e nossas"; de todos aqueles e aquelas que foram chutados para as margens, submetidos às barbáries do capitalismo, etc.

Também me agradava a forma honesta, direta, mas sempre respeitosa, com que ela debatia suas divergências, sabendo delimitar os verdadeiros inimigos. Enfim, era, e sempre será, uma grande figura. Era uma eterna rebelde. Daquelas que, de verdade, deixam sua marca na História e se tornam "eternas" exatamente porque serão, sempre, uma referência para todos e todas nós.A imagem pode conter: 1 pessoa

Por isso mesmo, é muito doloroso que tenhamos que tratá-la, hoje, como mais um "símbolo" das atrocidades cometidas pelo capitalismo, o racismo, a LGBTfobia, o machismo, o ódio de classe e todo resto da inhaca em que este mundo de merda está naufragado.

Não há dúvidas que não era assim que a Marielle gostaria de ter entrado para História. Sei que o que mais ela desejava era continuar vivendo, amando e lutando. Chorando, sofrendo, se indignando, mas também sorrindo e lutando ao lado dos seus. Sendo "uma a mais", não "uma a menos". Sendo uma presença e não uma ausência inspiradora.

Por isso mesmo, cada grito "Marielle, presente!" (assim como todos e todas que tombaram na luta ou dedicaram sua vida inteira à ela) carrega consigo um significado tão especial. É um grito que ecoa algo que jamais sequer será entendido por seus assassinos, os mandantes, a classe que eles representam e todos e todas demais que alimentam e se beneficiam da exploração e da opressão. É mais do que uma palavra-de-ordem e um grito de protesto. É um compromisso. O mesmo que tinha Marielle.

O compromisso de fazer com que nossa vida tenha sentido nesta inhaca de mundo exatamente porque a dedicamos a mudá-lo, a revolucioná-lo, custe o que custar e através dos meios que se fizerem necessários, como já disse Malcolm X. Algo que é alimentado por uma coisaa que burgueses, reacionários e opressores jamais compreenderão: a certeza de, diante do mundo em que vivemos, a vida só vale a pena se for dedicada, como escreveu León Trotsky em seu testamento, para que “as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente”.

Por isso mesmo, milicianos, Bolsonaros, Damares, Trumps, os donos e diretores da Vale e gentalha afins jamais entenderão o que é assumir o compromisso de dar continuidade à vida de alguém com a qual não temos vínculos familiares, de amizade ou qualquer tipo de proximidade pessoal. Jamais entrará em seus corações e mentes embrutecidos e deformados pelo desejo de garantir os privilégios de uma minoria indecente de tão pequena.

Jamais compreenderão o porquê Marielle e todos e todas que nos foram arrancados, do mais conhecido ao mais “anônimo” serão eternizados em nossas lutas e, pra além delas, no mundo novo que, tenho certeza, assim como Marielle e Anderson tinham, será construído um dia. Essa canalhada nunca poderá entender o significado da palavra "companheira(o)" porque nunca irá ver outro ser humano como um(a) igual.

Um igual, e é importante ressaltar isto, que vê as diferenças entre nós (de raça, orientação sexual, gênero etc. etc.) com algo fundamental para que nos façamos ainda mais humanos, não como uma forma nefasta de criar desigualdades econômicas, políticas, sociais, culturais etc. etc.

Todo mundo sabe que, pra mim, esta história é delimitada, antes de tudo, por uma questão de classe. E independentemente do massacre ideológico que contamina os corações, mentes e atitudes de muitos e muitas dos “de baixo”, levando-os(as) a reproduzir a opressão e sonhar em se tornarem exploradores, há uma classe por trás disso. Uma classe formada por indivíduos cuja desumanidade se manifesta cotidianamente; seja nos assassinatos de Marielle, Anderson, Rosa, Zé Luis, Gildo (compas do PSTU que foram assassinados), Chico Mendes, Teresa de Benguela, Malcolm X, Harvey Milk ou qualquer outro(a) lutador(as); seja na disposição asquerosa de condenar 99% da humanidade à fome, à miséria, à opressão e às mais brutais condições de vida.

Por isso mesmo, nunca poderão entender que de forma imensamente intensa sentimos que um pouquinho de cada um de nós morreu com Marielle. Como também não entendem (ou acreditam) que a carregaremos para sempre em nossos punhos cerrados, em nossas veias vermelhas-vida e em nosso "sonho" com novo mundo que, como ensinou Lênin, é reflexo oposto do pesadelo que é a realidade que nos cerca e quis fazer de Marielle apenas “mais uma” vítima. .

Da mesma forma, jamais poderão entender como particularmente neste momento, Marielle pulsa tão forte em nossos corações e está cravada em nossas mentes. Não é porque, “apenas”, estamos lembrando de sua morte ou simplesmente festejando a prisão dos covardes assassinos.

Nestes últimos dias, e particularmente hoje, o que tá mexendo comigo (e, tenho certeza, com milhões de outros e outras Brasil e mundo afora) é o quanto Marielle, apesar dos canalhas, ainda pulsa viva e forte em nossos corações, mentes, lutas e, inclusive, na celebração da vida, da liberdade, da criatividade, da gana por justiça e igualdade.

Enfim, vive em tudo aquilo que, na essência, nos faz humanos. Algo que, também, nunca poderá ser entendido pelos exploradores e opressores, cuja humanidade há muito foi soterrada pela ganância, a sede por lucros e poder. Cuja única herança, há séculos, (além de quantias indecentes de dinheiro para seus descendentes) tem sido a perpetuação da miséria, da fome, dos genocídios e tudo aquilo que caracteriza a mais asquerosa e cruel desumanidade.

Nos últimos dias tive muitos motivos pra lembrar que "Marielle vive" porque ela vibra com o mesmo ritmo, força e beleza do desfile da Mangueira, que nos fez lembrar que ela tá do lado de Dandara, de Luiza Mahins e de todas Marias-mulheres. Porque nos faz e sempre fará cuspir fogo pelas ventas (com uma raiva que brota da nossa paixão pela humanidade, a liberdade, justiça e igualdade) assim como o Dragão de Aracati

Vive em nós como todos nossos(as) ancestrais, como os guerreiros e guerreiras do Cariri e todos, e particularmente, todas mulheres que nunca sequer pestanejaram diante da possibilidade de dar suas próprias vidas pra garantir que, um dia, todos e todas possam viver em plenitude.

Não deu pra conter as lágrimas quando vi Monica Benício, a companheira de Marielle, ultra feliz, falando de cima de um dos carros, o quanto tudo aquilo tinha a ver com a mulher com que compartilhou a vida. Monica resumiu: "Marielle era Carnaval".

E, como sempre viajo, na hora me lembrei da definição de Carnaval trabalhada por um cara que adoro: Mikhail Bakhtin, que defendia que o Carnaval é, desde sempre, um espaço privilegiado para que o povo, "os de baixo" celebrem a inversão dos valores e lógica do mundo no qual somos "emparedados", no sentido dado por Cruz e Sousa.

Ele dizia que o Carnaval, desde sempre, é um momento no qual o povo toma o espaço público pra escrachar seus "senhores"; quando os marginalizados apropriam-se dos espaços que são, por si só, o inverso daquele (o que recomeça na quarta-feira de cinzas) em que vivemos.

Ainda, é através do Carnaval que os/as excluídos, os/as oprimidos tomam as ruas, os meios de comunicação etc. como uma espécie de explosão de alteridade, onde se privilegia o marginal, o periférico, o excludente. Algo que foi visto em abundância, em meio à alegria e irreverência, nos blocos país afora nos quais o povo, pra celebrar a vida, levou Marielle pras ruas;

Sim, "Marielle era Carnaval".

Por isso mesmo, Carnaval é algo que Bolsonaro nunca irá apreciar. Apesar de que, cá entre nós, ninguém merece um presidente que, pra além de tudo, é capaz de protagonizar um espetáculo tão patético como o do "golden shower". Apesar de que não se poderia esperar outra coisa do ponto de vista de um presidente de merda.

Vive porque ecoou forte nos gritos e cantos que tomaram as ruas no Carnaval. Porque ainda (e sempre) nos inspira, nos representa, nos une e nos dá força pra seguir lutando como ficou tão evidente no "8 de março" e tem sido em todas lutas da classe trabalhadora e dos(as) oprimidos(as) no último ano.

Continuará vivendo porque temos com ela o mesmo compromisso daqueles e daquelas que no pior dos momentos (a travessia do Atlântico nos malditos tumbeiros) se fizeram "malungos", se tornaram companheiros e companheiras porque entenderam que a luta pela liberdade é "um sonho que se sonha junto"

Continuará vivendo porque, assim como nossos ancestrais malungos, nos faz lembrar que, para além das diferenças que possam existir entre "os de baixo", temos, desde sempre, algo que nos une com vínculos que nenhuma corrente, nenhum pelourinho, chicote ou bala pode conter: uma paixão desenfreada pela liberdade exatamente porque desde sempre tentaram nos roubar e o sonho indestrutível (de tão enraizado na realidade) com um mundo igualitário, porque lutamos a vida inteira (e há várias gerações) contra desigualdades cruéis que impõem sofrimentos indescritíveis.

É por isso que, hoje, a palavra que mais cutuca nossa mente é JUSTIÇA!!! Hoje, isso passa pelo compromisso de não dar arrego até que prisão dos assassinos e mandantes sejam colocados atrás das grades. Mas não somos ingênuos nem idiotas. Sabemos que a tal “justiça” também tem classe, raça, gênero, orientação sexual etc. etc. São homens ricos, brancos e héteros assim como o criminoso 1% que tomou o mundo de assalto.

Por isso mesmo, pra fazer justiça pra Marielle, nosso compromisso vai pra além da condenação daqueles que são responsáveis por sua morte. Nosso compromisso é com a vida dela. Com tudo aquilo que ela representou e com as lutas que travou. Enfim, nosso compromisso é com a mesma coisa pra qual ela dedicou sua vida: a humanidade.

Por isso, pra mim, é um compromisso com a revolução. É o compromisso de seguir lutando por um mundo socialista. E enquanto esse mundo não vier (ou melhor, pra que ele se faça) é o compromisso de ter a garra e a disposição militante pra fazer com que Marielle se multiplique em mais e mais rebeldes, lutadores(as) e revolucionários(as).

O compromisso de fazer com que, para cada um ou uma que for arrancado de nós, surjam outros cem, outros mil, outros milhões que, enraizados na classe, na perifa, nas fábricas e escolas, no campo, nas cidades, nos quilombos e nas aldeias, reverenciem a vida de Marielle e todos e todas que se foram, dedicando as suas próprias aos mesmos ideais que ela tinha. É o compromisso de fazer o que for necessário pra virar o jogo e aquilombar o mundo. De fazer com a canalhada por trás do assassinato e a classe que representam sejam varridos para o lixo da história.

Pra acabar, relendo o que escrevi, acho que este texto, pra além de um incômodo nó na garganta e aperto no peito, nasceu da minha própria necessidade de deixar este compromisso público. Mas tenho certeza que não falo só por mim. De imediato, sei também falo por aqueles e aquelas com os quais milito mais próximo, os/as compas do PSTU Nacional, Liga Internacional de los Trabajadores - Cuarta Internacional e suas seções mundo afora, da CSP - Conlutas, os sindicatos e organizações populares, rurais e quilombolas filiadas à Central, seu Setorial LGBT, do Quilombo Raça e Classe e do Movimento Mulheres em Luta (das quais, peço licença atrasada por ter “roubado” a imagem abaixo).

Mas, o que me faz mesmo acreditar que a verdadeira justiça será feita, que o novo mundo virá, é a certeza que este compromisso vai pra além de mim e os que me cercam. É o mesmo de todos os(as) rebeldes, ativistas e lutadores(as). É o mesmo do PSOL e de diversas organizações e partidos revolucionário ou “de esquerda” mundo afora. É mesmo de todo o povo que se fez militante nos movimentos em que Marielle atuava.

Algo que reafirmaremos com força e garra especiais nos próximos dias. Ma, tenho certeza, não parará por aí. Não pensem os exploradores e opressores que esqueceremos qualquer um dos nossos.

Por isso, que eles tremam cada vez em que se depararem com a frase “Marielle vive”, pois nela também reside nossa certeza de que ela será vingada pela luta de classes, e pela constante rebeldia dos(as) oprimidos. Se pensam que podem enterrar a história de nossas lutadoras e lutadores estão muito enganados.

A perda nos dói e eles sabem muito bem disso e, por isso mesmo tentam fazer da violência uma forma de controle social e desencanto. Mas o luto vira luta. A dor nos fortalece.

E é desse jeito porque cada Marielle se transforma numa raiz de Baoba, nos lembrando de nossa história e ancestralidade, alimentando nossos sonhos e mantendo viva a certeza de que de que os frutos virão.

A imagem pode conter: 1 pessoa, barba, chapéu e atividades ao ar livre

Wilson Honório da Silva, autor deste texto (foto). É militante e dirigente do PSTU.

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